Brasil: “Comedora de placenta” ou vítima da violência obstétrica?
“Sou um animal ferido, que volta destroçado e ensanguentado para o seu ninho, após sobreviver a uma tentativa quase eficaz de abate. Sou um mamífero em apuros, com sua cria no colo, chorando pelo pouco leite que sai das tetas de sua genitora”… “É o substrato da violência patriarcal, machista, corporativista e medicalocêntrica que nos encarcera nesse projeto de civilidade que se nos impõe, rouba de nós mulheres a autonomia, a força, o parto, o nascimento e a maternidade. Uma mulher que pari e sabe a força animal que tem em si é uma grande ameaça a esse sistema, não é mesmo?” Así No!!
“Comedora de placenta” ou vítima da violência obstétrica?
Ridicularizada e perseguida em sua própria cidade, o relato absolutamente chocante de uma mulher cruelmente exposta por uma equipe de saúde e por uma mídia criminosa, sensacionalista barata
Ligia Moreira Sena, cientista que virou mãe
Foi assim que a experiência traumática de parto de uma mulher (uma das mais traumáticas que já li ou ouvi) foi relatada e divulgada pela mídia. Uma mulher reduzida a “surtada comedora de placenta” (Fonte 1 / Fonte 2).
O relato e divulgação do caso, nesses termos, no entanto, somente aconteceram após o médico que a atendeu, Iaperi Araújo, ter se referido de maneira degradante, humilhante e ridicularizante à parturiente em sua página na rede social.
Você deve ter ouvido falar sobre esse caso. Aconteceu em Natal, no dia 02 de julho, mas a mídia somente começou seu freak show após a postagem do obstetra. Ex-obstetra, corrijo-me. Porque ele decidiu parar de praticar a obstetrícia.
Pois bem.
Em uma das matérias que menciono acima, há uma entrevista com ele, que conta, sob seu viés, o que considera ter acontecido.
Eu, que estudo a violência obstétrica e as práticas que a constituem, somente lendo sua entrevista (e os prints de sua publicação na rede social), pude identificar o que aconteceu, a motivação, a luta dessa mulher contra a separação mãe-bebê, o preconceito, a desinformação, a má prática, a luta contra a medicalização e a violência institucional e muitos outros pontos que nos dão uma visão aproximada de algo que acontece, infelizmente, ainda muito pouco: a reivindicação explícita dos direitos das mulheres no parto e contra a violência obstétrica. Mas acontece que encontrar mulheres suficientemente empoderadas para tal é evento tão raro que, quando acontece, elas são ridicularizadas e expostas pela mídia como “surtadas”, “comedoras de placenta” ou “irresponsáveis que colocam a vida dos filhos em risco e precisam de medidas legais que as acuem e as obriguem a uma cesárea contra sua vontade”, como aconteceu com Adelir Carmem Lemos de Góes, em abril deste ano.
Como a mim não interessa outra voz além da dessas mulheres – entre as quais também me incluo – abaixo você vai ler o relato da própria parturiente. Hoje uma mulher vivendo um puerpério extremamente difícil, vítima de bullying, ridicularizada e perseguida em sua própria cidade, cruelmente exposta por uma equipe de saúde e por uma mídia sensacionalista barata.
E por que?
Porque lutou com todas as forças que tinha, e após ser humilhada, ridicularizada e vitimada pela violência obstétrica, que faz centenas de novas vítimas todos os dias, para que não a separassem de seu filho.
Esse é o relato dela.
Absolutamente chocante.
E vai continuar acontecendo. Todos os dias. Com centenas de mulheres.
Até que tenhamos medidas concretas para coibir e punir a má prática que faz, todos os dias, novas vítimas.
Olhe para seu país. Olhe para suas mulheres.
Há violência, mutilação e horror aqui mesmo.
E encarada como normal, ou rotina.
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“Sou um animal ferido, que volta destroçado e ensanguentado para o seu ninho, após sobreviver a uma tentativa quase eficaz de abate. Sou um mamífero em apuros, com sua cria no colo, chorando pelo pouco leite que sai das tetas de sua genitora. Eu. Que assustada me escondo de tudo e de todos, pois apesar de ter sobrevivido ao abate, sou agora açoitada e perseguida por meus iguais, mamíferos de mesma ordem, agora robotizados e produzidos por algum processo estranho e sintético, alheio ao processo natural de continuação da espécie, não conhecem o amor, nem o nascimento, nem a maternidade.
[…]
É incrível como na minha cabeça o desenrolar dos fatos e das emoções está cada vez mais claro, nítido, e é cada vez mais surreal a ideia de conseguir escrevê-lo.
[…]
Os flashes não me permitem dormir. O cansaço é infinito, as dores no corpo também são. Meus músculos que aos pouco se recuperam dos últimos dois dias sem dormir, juntamente com o cansaço provocado pelos momentos de tortura no hospital, meus músculos doem, doem tanto que parece que jamais vão sarar. Mas o que me dói mesmo é um canto do meu ser que não sei onde fica, não sei o que é. Sinto apenas uma sensação de vazio na existência. Uma espécie de “rombo” no meu existir, no meu ser, e que me anula por completo, me derruba como nem os meus torturadores conseguiram durante aquelas três horas e meia na sala de parto do Hospital Papi. Penso que o abate moral é um limiar entre eu me suicidar e continuar existindo, me rastejando. Fui abatida? Será que morri? Mataram-me e continuei viva, pelo meu filho que precisava ouvir as batidas do meu coração e foi arrancado violentamente de mim pelas mãos de quem desdenhava de um animal ferido cujo sangue jorrava aos montes, preso a uma mesa da qual não podia sair, pois estavam-lhe arrancando o resto de parto, de vida, que havia nela, sua placenta, tracionada e arrancada brutalmente pelas mãos do obstetra que me atendeu na urgência do hospital. Foi um verdadeiro espetáculo para quem assistiu. Pena que não foi ficção, e alguém ali estava sendo humilhada, moralmente assassinada, fisicamente mutilada, destroçada. Se me mataram, fui então um cadáver vilipendiado.
[…]
Finalmente, exatamente dez dias após o nascimento do meu filhote, estou cá, sentada de frente ao computador, decidida a relatar o que me aconteceu. Foram dez dias de repouso e fortalecimento, mesmo com todas as críticas, com todos os comentários atrozes e as reportagens na mídia me deplorando. Fui chamada de louca, psicopata, disseram que deveriam tirar meu filho de mim (e então ter-me-iam arrancado tudo que restava, e de mim nada mais haveria além de um bolo de carne com um coração pulsante, quando então já não haveria mais o limiar do abate moral, eu já estaria morta). Foram dez dias também de intensificação de todo o sofrimento que me açoita, pois agora eu tenho de lidar com inúmeros telefonemas, mensagens, pessoas perguntando umas às outras se o absurdo da mulher que teria comido placenta, agredido médico e corrido nua por aí tinha sido eu. Infelizmente não comi minha placenta, ainda, pois ainda não tive coragem para encará-la, pegar nela, senti-la, tão cheia de mim, da minha cria, e das emoções que vivenciamos durante nove meses, e nos últimos momentos do meu bebê dentro de mim. Infelizmente também não corri nua, precisei perder alguns minutos me vestindo com roupas sujas e ensanguentadas, pois até panos limpos me foram negados. Pensando bem, eu estava com muito frio, a hemorragia incontida me enfraquecia cada vez mais, acho que foi instintivo parar para me aquecer com aquelas roupas, ainda que sujas e ensanguentadas, aliás, sangue não faria diferença, pois depois que levaram meu filho de mim injustificadamente e manifestamente contra minha vontade para o berçário para lavá-lo com sabão, tirar o vernix protetivo e embrulha-lo com fraldas descartáveis e aquecê-lo artificialmente, desdenhando de meu clamor para tê-lo em meus braços, depois disso eu devo ter lavado com meu sangue o rol da frente do berçário. Perdoe-me quem estiver lendo, os fatos vão e vem, não sei se consigo seguir uma ordem cronológica muito precisa. E por fim, infelizmente não agredi o obstetra. E sequer posso mencionar publicamente o que se passa na minha mente, nesse sentido, por dois motivos: primeiro, eu seria processada, julgada e condenada muito facilmente por algum tipo penal como ameaça, por exemplo. O judiciário não tem pena de foder com quem já está fodido. Segundo, não tenho energias para gastar com isso, preciso me concentrar no meu filhote, que precisa de mim. Se minhas tentativas de afirmar minha autonomia e meu direito de escolha que foram sistematicamente tolhidos e aniquilados durante todo o meu atendimento naquele dia 02 de julho de 2014, se foram agressões, talvez eu o tenha agredido. E ainda assim digo isso em tom de ironia. Imagino que se as minhas tentativas de sobreviver ao massacre foram agressões, o que foi o massacre que me ocorreu naquela sala de parto? Será que um médico famoso de Natal, professor da universidade federal do RN, conhecedor de muitos juízes, promotores, respaldado pelo corporativismo médico, judiciário e elitista da região, será que ele seria sequer processado? Ou algum juiz amigo dele sentaria em cima do processo, ou mesmo enterraria o processo no quintal de casa? O que me resta é escrever um relato. É o substrato da violência patriarcal, machista, corporativista e medicalocêntrica que nos encarcera nesse projeto de civilidade que se nos impõe, rouba de nós mulheres a autonomia, a força, o parto, o nascimento e a maternidade. Uma mulher que pari e sabe a força animal que tem em si é uma grande ameaça a esse sistema, não é mesmo?
[…]
Cheguei no hospital por volta das 20h30… Eu estava a mais de 36 horas em trabalho de parto ativo, bolsa íntegra. Quando subi para o atendimento, ouvi um velho grosseiro me gritando: “Por que não fez pré-natal??”. Eu respondi: “Primeiro, eu fiz pré-natal, mas não trouxe nada comigo, e segundo, o senhor não precisa falar assim comigo, viu?”. Ele respondeu que estava falando em tom normal, que não tinha nada a ver, e saiu sorrindo. Eu havia feito todos os exames de sangue, ultrassons, inclusive no dia 01 de julho eu havia feito uma ultra cujo diagnóstico foi excelente, meu líquido estava bom, o bebê encaixado, saudável, maduro. Quando meu pai chegou na sala de atendimento o obstetra foi logo dizendo que não ia me atender, que se precisasse fazer alguma coisa ele não ia fazer, porque estava sozinho, e assim, manifestamente e na presença de todos que comigo estavam, me violentou pela primeira vez, negando-me atendimento. Pedi a meu pai que fossemos embora, pois a coisa não ia funcionar daquele jeito. Mas ele não concordou, estava muito apreensivo, e cansado. Resolvi ficar. Não sabia que estava naquele momento assinando minha sentença de morte. Eu tinha ouvido que eu iria pro quarto. Pensei: tudo bem, eu vou parir no quarto, deve estar pertinho e eu só preciso de um quarto. Mas não tinha leito no Papi, e não me encaminharam para outro hospital. Eu deveria ficar ali mesmo, esperando. Foi então quando o doutor resolveu me examinar. Essa violência foi um pouco mais dolorosa. Ele fez um toque, rompeu minha membrana, gritei de dor. Sua mão saiu de dentro de mim lavada com meu sangue e um pouco da minha integridade, que aos poucos ele terminaria de arrancar de mim nas três horas e meia seguintes. Pedi para ficar nua, e me foi dito que eu não poderia ficar nua, pois naquele hospital eu deveria seguir os protocolos. Consegui ficar apenas com a bata cobrindo-me os peitos. Aceitei a analgesia. Não sabia eu que ali estava o ápice da dominação do meu ser, pois sem sentir as pernas eu não poderia me defender, sair andando, correndo, não poderia mais fugir do massacre, eu me tornaria um animal indefeso. Foram chamar o anestesista. Entre uma contração e outra, que já estavam vindo de minuto em minuto e cada vez mais forte, gritei:
“Cadê o filha da puta do anestesista?”. No meu tempo ele já estava demorando muito, eu já estava desesperada, e aquilo era meu grito de socorro. Então, ironizando e debochando de mim, o doutor gritou: “Chamem aí o filha da puta do anestesista!”. A cada segundo que se passava eu percebia mais o quanto aquilo estava fadado a não dar certo, o cara era um estúpido, e não economizava seus deboches e suas grosserias. Quando ele chegou fui para a sala de parto, onde estava a mesa de parto, o aparato onde eu estaria sendo torturada pelas próximas três horas e meia. Devia ter cerca de um metro de comprimento, por uns 70cm de largura. Imagino que se eu fosse mais larga eu teria me espremido entre os ferros. O anestesista me disse para sentar com os ombros curvados, pedi então que ele aproveitasse entre uma contração e outra, pois eu não conseguiria ficar parada naquela posição durante uma contração. Eu pedia para ele ir logo, mas ele estava muito ocupado falando ao celular.
Depois disso eu tive que deitar em posição de exame ginecológico, a posição da dominação. Eu estava completamente dominada. Perguntei se poderia ficar em outra posição, de quatro, por exemplo, ou de lado, pois me aliviava a dor, e isso me foi de pronto rebatido com “NÃO” por todos os lados. Eu deveria ficar quieta, segurando em dois ferrinhos que tem do lado das pernas na cadeira de parto. Eu não podia sequer por as mãos nas minhas pernas, aliás, minhas tentativas foram todas frustradas, eu teria repetidamente minhas mãos encaminhadas de volta aos ferros da cadeira. Estavam comigo meu pai e Daniel, um amigo clínico geral que havia ido conosco ao hospital. Me diziam para fazer força, empurravam minha barriga, eu fazia força até sentir que ia vomitar. A orientação era essa: quando você achar que não vai aguentar e vai vomitar, pare. O anestesista pressionava meu estômago com seu polegar, era fatal. Vomitei não sei nem quantas vezes, após cada contração, após ter meu estômago pressionado repetidamente. Eu não tinha vomitado ainda, antes de ir pro hospital. Vomitei deitada, quase morri engasgada com meu próprio vômito e ninguém sequer me ajudava a me limpar. Até meu pai e Daniel cederam às ordens autoritárias do obstetra e empurraram minha barriga. Segundo o anestesista, todos deveriam obedecer ao obstetra, pois ele era professor de todos. Eu sofria com a dor dos empurrões e da mão do obstetra dentro da minha vagina. Me senti estuprada. Diziam que era assim mesmo, e que se eu não me concentrasse ia matar meu bebê, que daquele jeito estava difícil, que eu não ia conseguir. Ouvi isso repetidamente durante as três horas e meia em que estive lá. Lembro que eu mantinha em mente sempre que eu não poderia apagar, então controlava a força até um pouco antes do meu limite, com medo de ficar inconsciente e do que poderia vir a me acontecer. Eu estava apavorada, e disposta a tudo para parir meu filho. Eu não iria pra faca, de modo algum eu me submeteria a uma cesárea, ainda com toda aquela oferta. Vi gente entrando e deixando bolsa pessoal na sala de parto, com celular tocando, vi gente entrando com walk-talking ligado. Eu reclamava que tinha muita gente e muito barulho, e que as pessoas não estavam me ajudando. A pediatra, Lívia, disse que aquele parto era uma loucura, que eu era louca, e que tinha que ter aquela equipe toda lá dentro, disse que eu não era ninguém para discutir a necessidade ou não de todas aquelas pessoas ali. Na verdade não entendo porque era tão necessário, pois estavam todos (à exceção do obstetra que me violentava com suas mãos carniceiras e o anestesista que insistia em empurrar minha barriga) apenas observando, gritando comigo, conversando entre si e fazendo da minha vagina aberta e exposta um souvenir de apreciação. Eu implorava, aos prantos, para o obstetra tirar as mãos de dentro de mim, pois ele estava me machucando, me invadindo, e ele repetidamente se negou a me atender, disse-me que se eu tivesse procurado um ginecologista eu não estaria ali atrapalhando a vida dele, disse-me que não estava ali para prestar serviço algum para mim, e que minha vida pouco lhe importava, ele só se importava com o bebê. Quando o bebê nasceu eu percebi que na verdade nem com ele o cara estava preocupado. Ele queria, assim como toda aquela equipe estúpida, que aquilo acabasse logo. Eu chorava, olhava pro meu pai e pedia ajuda, dizia que estava foda pra mim, e ele então pedia ao médico que calasse a boca, pedia a tal da Lívia que se calasse também. Eu disse que não queria que cortassem o cordão umbilical do meu filho, e o obstetra perguntou com base em quê eu dizia aquilo. Respondi que tudo que eu queria estava no meu plano de parto, que estava lá, que ele deveria ver, e que eu dizia aquilo com base na minha autonomia e no meu direito de escolha. Ele respondeu sagazmente que não aceitava plano de parto, e que nunca tinha ouvido falar naquelas coisas não, que lá aquilo não existia. A pediatra Lívia então começou a gritar comigo dizendo que tinha que examinar o bebê, medir, pesar, fazer testes, levar pro berçário, e eu disse que não deixava, ela me gritando e chamando de louca disse que eu não tinha autoridade pra decidir nada sobre o meu filho, eu respondi que o filho era meu e que ninguém o tiraria de mim. Tudo isso entre uma contração e outra.
Às vezes a contração passava enquanto eu tentava me defender de toda aquela escoriação moral. Pedi então ao meu pai para que me ajudasse pois eu precisava me focar no trabalho de parto, meu filho estava prestes a nascer. Ele pediu a ela que colaborasse, que não tinha pra que discutir aquelas coisas comigo naquele momento. Ela respondeu que não se calaria, que tinha que falar e que eu tinha que ouvir mesmo. É incrível como eu me impressiono quando lembro do horror que vivi naquela sala. Lembro que quando o doutor fez o toque eu estava com 8 cm de dilatação, ainda não tinha começado o expulsivo. Pouquíssimo tempo depois minha tortura começara, e desde a primeira contração o médico dizia: na próxima ele sai, faça força que ele vai sair, ô Márcio, empurra aí a barriga dela. Dizia: olhe, eu sou muito bom em fórceps, pena que meu equipamento não está aqui. Eu reclamava que ele estava me machucando, que tava doendo, e ele dizia: se você quisesse um parto sem dor faria uma cesárea, quer? Você não quer uma cesárea, ta vendo? Ta reclamando de que? Eu reclamava da luz, do barulho e ele respondia: eu já fiz parto humanizado, com baixa luminosidade, poucas pessoas na sala, mas aqui eu não tenho tempo pra isso não. Foi um horror ouvir aquilo, até eu queria que acabasse logo, mas eu não ia pra faca, e eu não ia ter meu corpo condicionado a uma ocitocina sintética.
Eu estava disposta a parir meu bebê, a qualquer custo, ainda que me estivesse custando a integridade moral e física. No finalzinho do processo a bolsa rompeu. O médico ouviu o coração do bebê, estava 130 bpm. O líquido estava límpido. Mas eu ouvia que o bebê estava em sofrimento. Imagino que presenciando toda aquela tortura, todo aquele tratamento desumano e degradante, meu bebê realmente estivesse sofrendo, mas em sofrimento fetal ele não estava. Eu sabia que estava tudo bem com ele. Eis que então o líquido começou a se apresentar meconioso, mas de toda forma, para que se comprovasse o sofrimento fetal ele deveria ao menos ouvir novamente o coração do bebê, mas quando indagado sobre tal, o obstetra respondeu que não iria mais ouvir, já tinha ouvido uma vez (antes da rutura da bolsa). Quando o líquido mudou de cor toda a pressão psicológica se intensificou. E então, coagida a aceitar, sob pena de “matar meu bebê”, cedi a uma episiotomia, que segundo o médico seria só um cortezinho pequenininho. Meu pai disse que ele cortou com a tesoura e terminou de rasgar com a mão. Há uns dois dias tive coragem de me ver, e descobri uma episiotomia que me rasgou até o anus, e que me dói para sentar, para andar, dói muito na hora de ir no banheiro, mas a dor maior que eu sinto é na alma. Nem sei se um dia vou ter coragem de abrir as pernas de novo.
Meu bebê então nasceu, veio para o meu colo, todo lindo, roxinho, cheio de mecônio, respirando bem e chorando bravamente!!!! Viva! Eu havia conseguido!!! Eu e ele havíamos conseguido! Nosso pesadelo acabaria! Enquanto eu tentava dizer a todo mundo que ele tava bem, tava respirando, tava chorando, e que precisava ficar comigo. Disseram o obstetra e a pediatra que tinham de cortar o cordão senão o sangue voltaria e o bebê perderia sangue. Meu pai então recebeu das mãos do obstetra uma tesoura e cortou o cordão. Enquanto isso a pediatra Lívia estribuchava querendo arrancá-lo de mim, pois precisava examiná-lo, ver o que era aquela bossa na cabeça dele (por certo ela não sabe nada de parto normal, de bebês que de fato nascem, em vez de serem arrancados de suas mãos pela barriga, por certo ela não sabe que bossa é comum e não é problema algum, por certo ela também não sabe que não precisa aspirar o bebê, mesmo com presença de mecônio, desde que o bebê esteja respirando bem, e mais certo ainda que ela não sabe do meu direito de decidir sobre isso). Mas ninguém me ouviu. Sob tal terror dessa médica inescrupulosa, meu pai me olhou e disse: “Entregue o bebê senão eu vou embora”. Daniel, com cara de apavorado, corroborou a fala do meu pai. Nessa hora tive medo de ficar sozinha e ser por fim trucidada e aniquilada, e aos prantos entreguei meu bebê para que fosse examinado na sala de parto. Pegaram ele que nem uma trouxa de panos e o aspiraram. De nada adiantou o pacto com meu pai, pois ele ainda assim se foi.
Saiu para buscar um pote para a placenta. Nessa hora olhei e vi o obstetra puxando minha placenta, o anestesista preparando uma injeção anti-hemorrágica e uma pessoa de bata azul cinicamente levando meu bebê para o berçário enquanto eu gritava para ele não ir. Desde o primeiro momento eu havia confiado a Daniel a tarefa de não deixar levá-lo, mas ele também cedeu. Essa talvez seja a parte que mais me dói. Quando minha placenta saiu eu gritei: “A placenta é minha!”. O médico ia jogá-la no lixo. Ele ainda ironizou querendo me apresentar à minha placenta, mas nessa hora eu só pensava em ir buscar meu filho. Pedi panos limpos, e me negaram. Pedi uma escada para descer da mesa. Negaram-me. O anestesista olhou pra mim e disse: “Mas você não pode andar, não sente suas pernas”. Bati com força na minha panturrilha, dei vários tapas, com força, queria sentir o sangue circular, bati nas pernas dizendo que podia sim andar, e que se não me dessem uma escada eu ia pular dali, sangrando como estava, jorrando sangue.
Eu era um animal ferido, mutilado, ensanguentado, que teve sua cria tomada. Eu estava transtornada. Queria sair dali e me recolher, eu precisava me proteger, eu iria morrer sangrando ali, ninguém me daria meu filho para que ele pudesse mamar e estancar a hemorragia. Tentaram me impedir de sair da sala de parto, pois eu estava nua. Foi então que me deram meus trapos sujos de sangue, vesti ali no corredor mesmo, e fiquei gritando na frente do berçário, de portas trancadas, gritando que queria meu filho comigo. Foi o ápice do espetáculo. Um ser abatido, lutando para ter sua cria de volta, e uma plateia imensa e inerte assistindo, me dizendo para tomar banho, me limpar, e então eu poderia ver meu filho, pois eu estava desequilibrada e ele não era propriedade minha. Eu não vou nem mencionar o quanto eu queria exterminar cada uma daquelas pessoas que se interpunham entre mim e meu filho, mas eu estava muito fraca, perdendo muito sangue.
Foi então que meu pai, que havia saído, voltou e me ouviu gritando, desesperada. Quando ele chegou à porta do berçário gritou dizendo que queria o bebê, e como resposta teve apenas o desdém de todos. Foi preciso ele ameaçar arrombar a porta para que resolvessem sensatamente entregar meu filho (a ele). Finalmente pude ter meu filho nos braços.
O que me foi arrancado jamais terei de volta.
Foi o dia mais pavoroso da minha vida.
Espero um dia poder fechar os olhos para dormir em paz, sem que os ecos dessa tortura me atormentem.
[…]
Não consigo mais remoer os fatos, escrever esse relato me trouxe à exaustão”.