Venezuela: resumo rápido para os curiosos e os pouco informados
Enquanto a esquerda internacional continuar a lhes virar as costas e apoiar, de forma acrítica, a tese estatal do “golpe de Estado”, os milhares de manifestantes continuarão à mercê dos discursos mais conservadores dos partidos políticos de oposição.
No dia 4 de fevereiro de 2014 estudantes da Universidad Nacional Experimental de Táchira, localizada no interior do país, realizaram um protesto contra o abuso sexual de uma companheira, sinal da situação de insegurança na cidade. A manifestação foi reprimida e vários estudantes foram detidos. No dia seguinte, outras universidades do país realizaram o seu próprio protesto em defesa da libertação dos detidos, sendo por sua vez reprimidos e registando-se a prisão de alguns estudantes.
A onda de contestação ocorria num contexto de crise económica, escassez e crise de serviços básicos e início da aplicação de um pacote de medidas económicas por parte do presidente Nicolás Maduro. Dois políticos da oposição, Leopoldo López e Maria Corina Machado, tentaram então capitalizar a onda de descontentamento, convocando novas manifestações sob o lema “A Saída”, com o objetivo de conduzir à renúncia do presidente Maduro. A convocação não deixava de refletir as divisões internas da oposição e o objetivo de depor da liderança Henrique Capriles, que condena publicamente os protestos. A coligação Mesa de la Unidad Democrática (MUD) tampouco as apoia.
A repressão das manifestações acaba por conduzir à sua extensão a todo o país. A 12 de fevereiro de 2014, são 18 as cidades que se mobilizam a favor da libertação dos detidos e contra o governo. Nalgumas cidades do interior, particularmente fustigadas pela escassez e falta de luz e água, as mobilizações são multitudinárias. Em Caracas três pessoas são assassinadas no contexto das manifestações. O governo atribui as mortes aos próprios manifestantes, mas o diário de maior circulação do país, Ultimas Noticias, que reúne o maior orçamento de publicidade governamental, revela fotos comprovativas de que os assassinos eram funcionários policiais. Como resposta, Nicolás Maduro afirma publicamente na rádio e na televisão que os organismos policiais haviam sido “infiltrados pela direita”.
A repressão contra os manifestantes não foi apenas realizada mediante o recurso a organismos policiais e militares, tendo igualmente incorporado grupos paramilitares que procuram dissolver de forma violenta as manifestações. Um membro de uma organização não-governamental (ONG) de defesa dos direitos humanos, Provea, foi sequestrado, ferido e ameaçado de morte por um destes grupos no oeste de Caracas. O presidente Maduro apoiou publicamente a atuação destes grupos, os quais denomina de “coletivos”. O governo venezuelano controla atualmente todas as estações de televisão, tendo ameaçado com sanções todas as rádios e jornais que transmitam informações sobre as manifestações. Por conseguinte, o espaço privilegiado de difusão de informação passou a ser ocupado pelas redes sociais informáticas, em particular o twitter. O uso de dispositivos tecnológicos pessoais permitiu a recolha e armazenamento em massa das agressões perpetradas pelos corpos repressivos. De acordo com informações veiculadas por organizações de direitos humanos, os detidos (muito deles já libertos) ultrapassam os 400 em todo o país, tendo-se verificado a existência de torturas – inclusive denúncias de abuso sexual – e tratamento cruel, inumano e degradante. Cinco pessoas terão sido assassinadas em manifestações.
Nos seus discursos, Nicolás Maduro incita à radicalização e violência dos manifestantes da oposição. De forma automática, sem alguma investigação criminal, defende que cada uma das vítimas foi assassinada pelos próprios manifestantes, permanentemente desqualificados com todos os adjetivos possíveis. Porém, esta beligerância parece não estar a ser partilhada por todo o movimento chavista, uma vez que muitas das suas bases se limitam a esperar que a situação esmoreça, sem expressões ativas de apoio. Nas poucas manifestações de rua que convocou, Maduro conseguiu apenas mobilizar os funcionários públicos. Não obstante a situação, e face à grave situação económica enfrentada, Nicolás Maduro continua a adotar medidas económicas de ajustamento, sendo a mais recente o aumento da Unidade Tributária.Protest by students continues in Venezuela
O aparelho de Estado reitera incessantemente a tese do “golpe de Estado”, semelhante ao ensaiado em abril de 2002. Esta versão conseguiu neutralizar a esquerda internacional, a qual nem sequer expressou qualquer preocupação em relação aos abusos e mortes em manifestações. As manifestações ocorrem em muitos pontos do país e carecem de um centro de direção, sendo convocadas através das redes sociais. Entre os manifestantes existem opiniões diversas sobre os partidos políticos de oposição, pelo que é possível identificar expressões tanto de apoio como de rejeição. Em Caracas, os protagonistas são oriundos, em particular, de setores de classe média e universitários. No interior do país, por sua vez, setores mais populares passaram a incorporar os protestos. Na capital, as reivindicações são maioritariamente políticas – libertação dos detidos e demissão do presidente – enquanto no interior estas tendem igualmente a assumir um cariz social, como a crítica à inflação, à escassez e à falta de serviços básicos. Enquanto algumas manifestações se tornaram violentas, com alguns manifestantes a recorrer a armas de fogo contra polícias e paramilitares, a maioria dos protestos, especialmente fora de Caracas, continuam a ser pacíficas.
A esquerda revolucionária independente venezuelana (anarquistas, alguns setores trotskistas e do marxismo-leninismo guevarista) não tem exercido qualquer papel nesta situação, tendo assumido a posição de mera espectadora. Alguns de nós denunciam ativamente a repressão estatal, prestando ajuda às vítimas de violação dos direitos humanos. Venezuela, um país historicamente produtor de petróleo, possui baixos níveis de cultura política entre a população, pelo que os manifestantes da oposição apresentam o mesmo problema de «conteúdo» das bases de apoio do oficialismo. No entanto, enquanto a esquerda internacional lhes continuar a virar as costas e apoiar, de forma acrítica, a tese estatal do “golpe de Estado”, os milhares de manifestantes continuarão à mercê dos discursos mais conservadores dos partidos políticos de oposição, sem qualquer referência anticapitalista, revolucionária e de mudança social passível de os influenciar. Neste sentido, a detenção de Leopoldo López, líder conservador da oposição, poderá conduzir a que a sua figura se venha a converter no centro de uma dinâmica que, até ao momento, havia superado os partidos políticos da oposição e o governo de Nicolás Maduro.
O que se verificará a curto-prazo? Creio que o ninguém o pode dizer com absoluta certeza, em particular os próprios manifestantes. Os acontecimentos estão em pleno desenvolvimento.
Autor: Rafael Uzcátegui
Fuente: Passa Palavra
Para uma informação alternativa acerca da Venezuela, recomendamos:
Acerca dos elementos que contradizem a tese do Golpe de Estado: https://rafaeluzcategui.wordpress.com/2014/02/17/las-diferencias-de-abril/